quinta-feira, 9 de julho de 2009

De Jean-Arthur Rimbaud

A Paul Démeny

Rue Jean de Bologne

Douai.



Charleville, 15 de maio de 1871.



Resolvi lhe dar uma hora de literatura nova. Começo logo com um salmo da atualidade:

Canto de guerra parisiense



A primavera está no ar, pois

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– Eis a prosa sobre o futuro da poesia: –

Toda a poesia antiga termina na poesia grega, Vida harmoniosa. – Da Grécia ao movimento romântico – idade média,– há letrados, versificadores. De Ennius a Theroldus, de Theroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, deformação e glória de inumeráveis gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. – Que cada um sopre sobre suas rimas, rascunhem seus hemistíquios, o Divino Tolo seria hoje tão ignorado quanto o primeiro a ser autor de Origens. – Depois de Racine, o brinquedo estragou. Durou dois mil anos!

Nem piada, nem paradoxo. A razão me inspira mais certezas sobre o assunto que a cólera que tivesse algum dia um Jovem-França. De resto, libere os novos para execrar os ancestrais: estamos em casa e temos tempo.

Jamais julgamos bem o romantismo. Quem o teria julgado? Os críticos!! Os Românticos? que provam tão bem que a canção é tão poucas vezes a obra, quer dizer o pensamento cantado e compreendido do cantor.

Pois EU é um outro. Se o cobre amanhece clarim, não é culpa dele. Isso para mim é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento. Eu a olho eu a escuto: meu arco toca a corda: a sinfonia se agita nas profundezas, ou vem de um salto em meio à cena.

Se os velhos imbecis não tivessem encontrado apenas o significado falso de EU, não teríamos que limpar esses milhões de esqueletos que, desde um tempo infinito, acumularam os produtos de sua inteligência caolha, clamando que eram os autores!

Na Grécia, já o disse, versos e liras ritmam a Ação. Além do mais, música e rimas são jogos, descansos. O estudo desse passado encanta os curiosos: muitos se oferecem o prazer de renovar essas antigüidades: – é para eles. A inteligência universal sempre lançou suas idéias naturalmente; os homens colhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se por, escrevia-se livros: assim é que funcionavam, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto, ou ainda na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores: autor, criador, poeta, este homem nunca existiu!

O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o conhecimento de si mesmo, inteiro; ele busca sua alma, ele a observa, tenta, aprende (instrui). A partir do momentoque ele a sabe, ele deve cultivá-la; isso parece simples: em todo cérebro se cumpre um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; há também outros que atribuem a si seus progressos intelectuais! – Mas trata-se de fazer a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos, qual! Imagina um homem implantando e cultivando verrugas em seu rosto.

Eu digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente.

O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele exaure em si mesmo todos os venenos, para então guardar apenas as quintessências. Inefável tortura na qual necessita de toda a fé, toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao desconhecido! Uma vez que ele cultivou sua alma, já rico, mais que todos! Ele chega ao desconhecido, e quando, enlouquecido, ele acabaria por perder a inteligência de suas visões, ele as viu! Que ele estoure em seu sobressalto pelas coisas inaudíveis e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!

– seguem seis minutas –

Aqui, intercalo um segundo salmo, fora do texto: queira estender um ouvido complacente, – e todo o mundo ficará encantado. – Tenho o arco na mão, eu começo:



Minhas namoradinhas



Um hidrolato lacrimal lava

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Aí está. E repare bem que, se eu temesse lhe fazer desembolsar mais de 60 c. de porte, – eu pobre inquieto que, há sete meses, não toquei em uma única moeda de bronze! – eu lhe enviaria ainda meus Amantes de paris, cem hexâmetros, Senhor, e minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros!

– Eu retomo:

Portanto, o poeta é realmente ladrão de fogo.

Ele é encarregado da humanidade, dos animais mesmo; ele deverá fazer sentir, apalpar, escutar suas invenções; se o que ele traz de lá possui forma, ele dá forma; se é disforme (informe) ele dá a não-forma (informe). Achar uma língua; – De resto, toda palavra sendo idéia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser acadêmico, – mais morto que um fóssil, – para criar um dicionário, qualquer que seja. Fracos se poriam a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, que logo poderiam escoicear na loucura!

Esta língua seria da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento dependurando pensamento e estirando. O poeta definiria a quantidade de desconhecido que despertaria em seu tempo a alma universal: ele daria mais – que a fórmula de seu pensamento, que a notação de sua marcha ao progresso! Enormidade se tornando norma, absorvida por todos, ele seria verdadeiramente um multiplicador de progressos!

Este futuro seria materialista, o senhor vê; – Sempre repletos do Número e da Harmonia, esses poema seriam feitos para ficar. – No fundo, essa seria ainda um pouco a Poesia grega.

A arte eterna teria suas funções, como os poetas são cidadãos. A poesia não ritmaria mais a ação; ele seria antes.

Esses poetas serão! Quando se quebrar a infinita servidão da mulher, quando ela viver para ela e por ela, o homem, – até aqui abominável, – lhe tendo dado a sua oferenda, ela será poeta, ela também! A mulher encontrará desconhecido! seus mundos de idéias diferirão dos nossos? – Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, pulsantes, deliciosas; nós as pegaremos, as compreenderemos.

Esperando, peçamos aos poetas do novo, – idéias e formas. Todos os hábeis acreditariam logo ter satisfeito este pedido. – Não se trata disso!

Os primeiros românticos foram videntes sem dar muita conta disso: a cultura de suas almas começou nos acidentes: locomotivas abandonadas, mas ardentes que ficam algum tempo nos trilhos. – Lamartine é às vezes vidente, mas estrangulado pela forma velha. – Hugo, demasiado teimoso, possui ver nos últimos volumes: Les misérables são um verdadeiro poema. Tenho Les châtiments em minhas mãos; Stella dá um pouco a medida do ver de Hugo. Muito de Belmontet e de Lamennais, de Jehovahs e de colunas, velhas enormidades arrebentadas.

Musset é quatorze vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas de visões, – como sua preguiça de anjo as insultou! Oh! Que contos e provérbios insípidos! Oh, as Nuitss, oh Rolla, oh Namouna, oh la Coupe! Tudo é francês, quer dizer, odiável ao último grau; francês, não parisiense! Ainda uma obra deste odioso gênio que inspirou Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentada pelo senhor Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Charmoso seu amor! Aí está, pintura de esmalte, poesia dura! Saborearemos por muito tempo a poesia francesa, mas na França. Todo rapaz merceeiro está na medida de afetar uma apóstrofe Rollesca, todo seminarista carrega as quinhentas rimas no segredo de um caderninho. Aos quinze anos, esses elans de paixão colocam os jovens no cio; aos dezesseis, eles se já se contentam em recitá-los com alma; aos dezoito anos, aos dezessete mesmo, todo colegial que possui meios faz o Rolla, escreve um Rolla! Alguns talvez até morram aí. Musset não soube fazer nada; havia visões atrás da gaze das cortinas: ele fechou os olhos. Francês, arroz com feijão, arrastado do botequim à carteira do colégio, o belo morto está morto, e desde então, não nos ofereçamos mais nem mesmo a pena de despertá-lo por nossas abominações!

Os segundos românticos são mais videntes: Th[éophile] Gautier, Lec[onte]. de Lisle, Th[éodore] de Banville. Mas observar o invisível e ouvir o inaudito sendo outra coisa que retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Mesmo assim, viveu num meio demasiado artista; e a forma tão elogiada nele é mesquinha: as invenções de desconhecido reclamam formas novas.

Rompimento com as formas velhas – entre os inocentes, A. Renaud, – fez seu Rolla; – L. Grandet, – fez seu Rolla; – os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, Cl[aude]. Popelin, Soulary, L. Salles; os escolares, Marc Aicard, Theuriet; (es corts) e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, les Deschamps, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X[avier] de Ricard; os fantasistas, C[atule]. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Léon Dierx, Sully Prudhomme, Coppé, – a nova escola, dita parnasiana, tem dois videntes, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta – voilà. – assim eu trabalho para me tornar vidente. – E terminemos com um canto pio.



Acocoramentos



Bem tarde, quando sente uma gastura estomacal,

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O senhor seria execrável se não respondesse: rápido, pois em oito dias eu estarei em Paris, talvez.

Au revoir.

A. Rimbaud

quarta-feira, 8 de julho de 2009

“O que me importa são instantâneos fotográficos das sensações — pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafo de rua.”

“A sensação é alma do mundo. A inteligência é uma sensação? Em Ângela é.”

Clarisse Lispector – Um sopro de uma vida

"Que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar o
perfume." do livro Água viva C.L.
L. do D.

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem — trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?
s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
- 21.
A voz do Demônio

Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido as causas dos seguintes erros :

1.Que o homem tem dois princípios reais de existência: ou sejam: um Corpo e uma Alma.
2.Que a Energia, chamada Mal, é apenas do Corpo; e que a Razão, chamada Bem, é apenas da Alma.
3.Que Deus atormentará o Homem pela Eternidade por seguir suas Energias.
Mas os seguintes contrários a estes são verdadeiros:
1.O Homem não tem um corpo distinto de sua Alma, pois isso chamado Corpo é uma porção da Alma discernida pelos cinco sentidos, as principais entradas da Alma em nosso tempo.
2.Energia é a única vida, e provém do Corpo; e Razão é o limite ou circunferência externa da Energia.
3.Energia é Eterno Deleite.
Correspondências
A natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tem vasta como a noite a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se

Há perfumes subtis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
E outros, de corrupção, ricos e triunfais

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d'um clarim.

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães

Sensacionismo


[Três modos de correntes literárias] * [O Sensacionismo perante os movimentos literários anteriores]

[Princípios do Sensacionismo] * [Os Poetas Sensacionistas]

Três Modos de Correntes Literárias

Uma corrente literária sendo, por definição, uma ordem de obras originais, há três modos de correntes literárias:

  1. A corrente literária cuja única preocupação consiste em ser nova e original, rompendo com o passado conscientemente, embora inconscientemente esteja ligada a parte dele, como por força tem que acontecer.

  2. A corrente literária que procura sintetizar as correntes passadas.

  3. Aquela que procura sintetizar as correntes passadas e acrescentar-lhes qualquer elemento, isto é, sintetizá-las através de um critério novo, de uma nova visão das coisas.

São desta última espécie as mais altas correntes literárias. São aquelas que, reunindo em si quanto de original todas as correntes anteriores trouxeram, sintetizam através da sua virtualidade própria os característicos dessas correntes, e as transcendem com um qualquer característico que lhe[s] é peculiar.

Assim:

  1. Pretende apenas seguir qualquer corrente, renovando-a (Parnasianismo).

  2. Pretende criar uma corrente nova (Simbolismo).

  3. Pretende sintetizar todas as correntes passadas através de uma originalidade própria, a qual originalidade comporta um poder sintetizador como um dos seus característicos (Renascença italiana e inglesa).

Presumivelmente de 1916.

Pessoa, Fernando, «Estética, Teoria e História da Literatura / Plano e início de uma Teoria do Sensacionismo» in Obras de Fernando Pessoa, vol. III, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986

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O Sensacionismo Perante os Movimentos Literários Anteriores

O Sensacionismo rejeita do Classicismo a noção - na verdade mais característica dos discípulos modernos dos escritores pagãos do que deles propriamente - de que todos os assuntos devem ser tratados no mesmo estilo, no mesmo tom, com a mesma linha exterior a delinear-lhes a forma. O sensacionista não concorda em que uma obra de arte haja sempre de ser simples, porque há sentimentos e conceitos que, de sua natureza complexos, não são susceptíveis e expressão simplificada, sem que com essa expressão se traiam. Há certos conceitos profundos, certos sentimentos vagos que são, por certo, susceptíveis de tal tratamento literário; mas não são todos os sentimentos nem todos os conceitos. O sensacionista discorda, em seguida, da atitude clássica pela limitação da sua visão das cousas. A preocupação da visão nítida é, com a preocupação da expressão simplificada, por vezes um erro estético. Nem tudo é nítido no mundo exterior. O sensacionismo, finalmente, não aceita do classicismo a sua teoria basilar - a de que a intervenção do temperamento do artista deve ser reduzida ao mínimo. Interpreta o princípio estético que serve de base a tal afirmação, mas que em tal afirmação se encontra desvirtuado, de outro modo, do modo como ele deve ser interpretado. O artista interpreta através do seu temperamento, não no que esse temperamento tem de particular, mas no que ele tem de universal, ou universalizável. Isto é diferente de eliminar o factor temperamental tanto quanto possível, como os clássicos ferrenhos querem ou procuram; o artista deve, pelo contrário, acentuar muito o factor temperamental (embora em certos assuntos mais do que em outros), curando porém de que não sejam os lados inuniversalizáveis desse factor que utilize.

O Sensacionismo rejeita, do Romantismo, a sua teoria básica do «momento de inspiração». Não crê que a obra de arte deva ser produzida rapidamente, por um jacto, a ser que o artista haja conseguido (como alguns de facto conseguem) de tal modo ter o espírito disciplinado que a obra nasça construindo-se.

Do Simbolismo rejeita a exclusiva preocupação do vago, a exclusiva atitude lírica, e, sobretudo, a subordinação da inteligência à emoção, que deveras caracteriza aquele sistema estético.

Do classicismo aceita a Construção, a preocupação intelectual.

Do romantismo aceita a preocupação pictural, a sensibilidade simpatética, sintética perante as cousas.

Do simbolismo aceita a preocupação musical, a sensibilidade analítica; aceita a sua análise profunda dos estados de alma, mas procura intelectualizá-la.

Presumivelmente de 1916.

Pessoa, Fernando, «Estética, Teoria e História da Literatura / O Sensacionismo perante os movimentos literários anteriores» in Obras de Fernando Pessoa, vol. III, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986

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Princípios do Sensacionismo

  1. Todo o objecto é uma sensação nossa.

  2. Toda a arte é a conversão duma sensação em objecto.

  3. Portanto, toda a arte é a conversão duma sensação numa outra sensação.

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  1. A base de toda a arte é a sensação.

  2. Para passar da mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal - o que dá a emoção artística - essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa. Temos, pois:

    1. A sensação, puramente tal.

    2. A consciência da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho estético.

    3. A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.

  3. Ora toda a sensação é complexa, isto é, toda a sensação é composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir. É composta dos seguintes elementos: a) a sensação do objecto sentido; b) a recordação de objectos análogos e outros que inevitável e espontaneamente se juntam a essa sensação; c) a vaga sensação do estado de alma em que tal sensação se sente; d) a sensação primitiva da personalidade da pessoa que sente. A mais simples das sensações inclui, sem que se sinta, estes elementos todos.

  4. Mas, quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe. Porque - o que é uma sensação intelectualizada? Uma de três cousas: a) uma sensação decomposta pela análise instintiva ou dirigida, nos seus elementos componentes; b) uma sensação a que se acrescenta conscientemente qualquer outro elemento que nela, mesmo indistintamente, não existe; c) uma sensação que de propósito se falseia para dela tirar um efeito definido, que nela não existe primitivamente. São estas três possibilidades da intelectualização da sensação.

Presumivelmente de 1916.

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O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação - que a sensação é a única realidade para nós.

Partindo daí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações que podemos ter - as sensações aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental - as sensações do abstracto.

Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser a organização das sensações do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto. A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem.

Mas a arte deve obedecer a condições de Realidade (isto é, deve produzir cousas que tenham, quanto possível, um ar concreto, visto que, sendo a arte criação, deve tentar produzir quanto possível uma impressão análoga à que as cousas exteriores produzem). A arte deve também obedecer a condições de Emoção porque deve produzir a impressão que os sentimentos exclusivamente interiores produzem, que é emocionar sem provocar à acção, os sentimentos de sonhos, entende-se, que são os sentimentos no seu mais puro estado.

A arte, devendo reunir, pois, as três qualidades de Abstracção, Realidade e Emoção, não pode deixar de tomar consciência de si como sendo a concretização abstracta da emoção (a concretização emotiva da abstracção).

Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, mas sensações de emoção), mas a abstracção. Não a abstracção pura, que gera a metafísica, mas a abstracção criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que a filosofia é estática, a arte é dinâmica; é mesmo essa a única diferença entre a arte e a filosofia.

Por concretização abstracta da emoção entendo que a emoção, para ter relevo, tem de ser dada como realidade, mas não realidade concreta, mas realidade abstracta. Por isso não considero artes a pintura, a escultura e a arquitectura, que pretendem concretizar a emoção no concreto. Há só três artes: a metafísica (que é uma arte), a literatura e a música. E talvez mesmo a música...

Presumivelmente de 1916;

Pessoa, Fernando, «Estética, Teoria e História da Literatura / Princípios do Sensacionismo» in Obras de Fernando Pessoa, vol. III, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986

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Os Poetas Sensacionistas

Se a avaliação dos movimentos literários se deve fazer pelo que trazem de novo, não se pode pôr em dúvida que o movimento Sensacionista português é o mais importante da actualidade. É tão pequeno de aderentes quanto grande em beleza e vida. Tem só três poetas e tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente, sem querer, Cesário Verde. Fundou-o Alberto Caeiro, o mestre glorioso [...]. Tornou-o, logicamente, neoclássico o Dr. Ricardo Reis. Moderniza-o, paroxiza-o - verdade que descrendo-o [?] e devirtuando-o - o estranho e intenso poeta que é Álvaro de Campos. Estes quatro - estes três nomes são todo o movimento. Mas estes três nomes valem toda uma época literária.

Cada um destes 3 poetas realiza uma cousa que há muito se andava procurando [?] por esse tempo fora, e em vão. Caeiro criou, de uma vez para sempre, a poesia da Natureza, a única [?] poesia da Natureza. R. Reis encontrou enfim a fórmula neoclássica. Álvaro de Campos revelou o que todos os [...] paroxistas [?] e modernistas vários [?] andam há anos a querer fazer. Cada um destes poetas é supremo no seu género.

Presumivelmente de 1916.

Pessoa, Fernando, «Estética, Teoria e História da Literatura / Os Poetas Sensacionistas» in Obras de Fernando Pessoa, vol. III, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986

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outubro 06, 2004

O Sensacionismo

Sentir é criar.
Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias.
- Mas o que é sentir?
Ter opiniões é não sentir.
Todas as nossas opiniões são dos outros.
Pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente.
Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor do que se sente. Só se pode fazer sentir o que se sente. Não que o leitor sinta a pena comum [?].
Basta que sinta da mesma maneira.
O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras é proibido ser explícito.

Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente.
Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar - são os únicos mandamentos da lei de Deus. Os sentidos são divinos porque são a nossa relação com o Universo, e a nossa relação com o Universo Deus.
(...) Agir é descrer. Pensar é errar. Só sentir é crença e verdade. Nada existe fora das nossas sensações. Por isso agir é trair o nosso pensamento.
(...) Não há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo é a fórmula típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma [?] paradoxal.
(...) Afirmar é enganar-se na porta.
Pensar é limitar. Raciovinar é excluir. Há muito que é bom pensar, porque há muito que é bom limitar e excluir.
(...) Substitui-te sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti. Sê sempre imprevenido [?] por ti próprio. Acontece-te perante ti próprio. Que as tuas sensações sejam meros acasos, aventuras que te acontecem. Deves ser um universo sem leis para poderes ser superior.
São estes os princípios essenciais do sensacionismo. (...)
Faze de tua alma uma metafísica, uma ética e uma estética. Substitui-te a Deus indecorosamente. É a única atitude realmente religiosa (Deus está em toda a parte excepto em si próprio).
Faze do teu ser uma religião ateísta; das tuas sensações um rito e um culto. (...)

Fernando Pessoa, in 'Sobre «Orpheu», Sensacionismo e Paùlismo'

Publicado por pns em outubro 6, 2004 04:53 PM